Uber e a regulação dos novos modelos de negócios (Parte 3)

Nos últimos artigos desta série, exploramos o funcionamento do Uber, os argumentos contrários ao serviço e os fundamentos de sua legalidade. Neste artigo, falaremos sobre como modelos de negócios como o do Uber vem sendo tratados pelo Direito e qual seria a solução ideal para proteger interesses essenciais do consumidor e dos prestadores de serviço, mantendo ainda espaço suficiente para que o mercado possa também se desenvolver pela inovação.

Uma das primeiras perguntas a se responder é justamente: o que é regulação? E para que ela serve?

Regular, segundo o dicionário, é o ato ou processo que estabelece normas ou regras que devem guiar determinadas pessoas ou atos. Em termos mais simples, regulação é um conjunto de regras jurídicas que ditam o comportamento do indivíduo em uma determinada situação ou conjunto de situações. Quando se fala em regulação em Direito, geralmente refere-se a um conjunto de normas que se aplicam a determinado setor; diz-se, por exemplo, que o setor de energia elétrica é regulado, pois as empresas e indivíduos que quiserem produzir e fornecer energia elétrica devem obedecer diversas regras bastante específicas que limitam sua liberdade de escolher como atuar no mercado. Por isso, é também comum ouvir por ai que “o mercado de X é regulado” ou “o mercado Y não é regulado”. O mercado regulado obedece a regras que o Estado cria, o mercado não regulado (salvo algumas limitações básicas) obedece às regras de mercado. É por isso, por exemplo, que é mais fácil abrir uma empresa que vende móveis do que criar uma pequena emissora de rádio. No primeiro caso, a burocracia para abrir e operar a empresa é mínima (comparativamente), enquanto no caso da emissora de rádio, a própria exploração daquela atividade é controlada pelo Estado, que deve autorizar seu funcionamento (através de um regime de concessões, no caso).

Em termos mais amplos, regulação é uma das maneiras pelas quais o Estado pode interferir, moldar a economia. Caso determinado setor seja muito relevante para a economia nacional (como o do petróleo ou da energia elétrica), o setor terá várias regras para garantir que sejam respeitados os interesses da sociedade e do Estado. Caso certa atividade não tenha risco para a economia como um todo, para os direitos dos consumidores ou para o próprio Estado, este deixa aquele mercado ser ditado pelas próprias regras não escritas da economia (como a lei da oferta/demanda).

Mas em quais casos a regulação estatal é algo desejável? Em certas situações, fica bastante claro o interesse na regulação, como a discussão recente sobre as franquias de dados no oferecimento de serviço de internet fixa. Se o mercado das telecomunicações não fosse regulado, as empresas poderiam adotar essa medida sem necessitar de autorização e prejudicar uma infinidade de consumidores. Uma vez que o mercado é regulado, contando inclusive com agência regulatória própria, a ANATEL, tal medida, por potencialmente lesar direitos dos consumidores ou induzir uma alteração negativa no mercado (com a possibilidade de prejudicar o acesso à informação, valor hoje tido como essencial), encontra-se em revisão pela agência reguladora competente.*

Em outros casos, talvez a regulação atrapalhe mais do que ajude, deixando os agentes econômicos que atuam naquele mercado de mãos atadas em termos de competitividade, fazendo com que o produto ou serviço ofertado ao público perca qualidade ao longo do tempo, devido à impossibilidade de renovar o modelo de negócios ou o próprio produto. É o que, argumentam alguns, aconteceu com o setor de correios e hoje acontece com o setor de transporte urbano. No caso dos Correios, reconheceu-se há algum tempo que a empresa pública que monopoliza o serviço de correios não poderia reclamar também o monopólio do setor de entregas de pacotes, o que permitiu a multiplicação de transportadoras e serviços de courrier, como UPS e semelhantes. No setor dos transportes, a história ainda vai longe.

Quais as razões que justificam então a regulação estatal?

Para responder a essa pergunta, não podemos nos contentar com um rol fechado e fixo de hipóteses. Uma vez que o mercado é volúvel e imprevisível, não se podem excluir razões antes inimagináveis das possíveis razões para que o Estado interfira na economia. No entanto, com algumas categorias amplas, talvez possamos dar um quadro mais ou menos completo das hipóteses que quando presentes fariam necessária a regulação. Entre elas, podemos então citar: (a) atividades fundamentais para a economia nacional (infraestrutura, segurança, comunicações, energia elétrica); (b) atividades dominadas por oligopólios ou pequenos grupos de concorrentes (pelo risco à concorrência); (c) atividades essenciais para a sociedade (água, transporte público, serviços públicos); (d) atividades que apresentem risco aos direitos do consumidor ou de terceiro (atividade perigosa, bancos, comércio de massa). Cada hipótese traz, em si mesma, valores que devem ser sopesados, comparados, equilibrados, com os interesses econômicos e até sociais envolvidos na atividade econômica.

Mas o que mais percebemos ao buscar enumerar essas “hipóteses de regulação”? Que cada ramo apresenta seu próprio nível de regulação, de burocracia, não havendo apenas dois extremos: o regulado e o não regulado. Mesmo nos ditos mercados “não regulados”, há sempre alguma regulação mínima, ainda que não específica a determinado setor. Isso nos encaminha para a conclusão do nosso artigo: qualquer regulação deve ser sempre um equilíbrio de interesses dos agentes econômicos, do estado, do consumidor e do mercado como um todo. Por isso, salvo raras exceções, nenhuma regulação deve “sufocar” determinado setor, mas sim proteger o que é relevante e privilegiar a liberdade onde sua limitação em nada prejudica a finalidade da regulação. Nas últimas décadas, assistimos ao florescer de novos modelos de negócio, “disruptivos” na expressão comum, que revolucionaram a economia, a interação pessoal, a vida humana como um todo. Deve-se reconhecer que mais que as discussões tradicionais que levam apenas em consideração direitos do consumidor e interesses do Estado, a inovação deve certamente ter seu peso no processo regulatório.

Por essa razão, acredito que no caso do transporte individual privado, o ideal não é regular totalmente a atividade do Uber e de empresas semelhantes, ou desregular e libertar totalmente a atividade dos taxistas, buscando, por uma das vias, aproximar os setores. A proteção da concorrência, da inovação e mesmo dos direitos do consumidor exigem um modelo regulatório ponderado, devendo ocorrer adaptações de ambos os lados. Mesmo à luz da Política Nacional de Mobilidade Urbana, vale notar que não há óbice a uma ação coordenada que busque estabelecer algumas regras em torno da atividade de transporte peer-to-peer, ao mesmo tempo em que flexibiliza as duras regras que regem a atividade do taxista. Mantendo-se algum controle sobre aspectos essenciais como limitação de preço, qualidade mínima e transparência do serviço, o setor só teria a ganhar com tal cenário.

 

*Fique ligado para um novo artigo sobre a questão das franquias de banda larga, logo mais.

 

Veja aqui o primeiro artigo da série: “Uber: a chegada conturbada ao Brasil (Parte 1)”

Veja aqui o segundo artigo da série: “Uber: os argumentos pela legalidade (Parte 2)”

 

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