Requerimento de dados eletrônicos situados no exterior: parecer do Prof. Francisco Rezek na íntegra.

Os jornais brasileiros noticiaram recentemente que a ASSESPRO Nacional – entidade que congrega empresas de tecnologia da informação no Brasil – ajuizou Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) perante o Supremo Tribunal Federal, por meio do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia. A ação busca a declaração de constitucionalidade dos Tratados Bilaterais de Assistência Judicial – os MLATs – , de modo a garantir que o Ministério Público e o Poder Judiciário recorram a esses tratados quando precisem acessar, obter ou apagar dados eletrônicos mantidos no exterior. A ADC nº 51, quando de seu ajuizamento, foi acompanhada de um parecer do Professor Francisco Rezek, que você pode ler na íntegra mais abaixo.

O Brasil tem visto nos últimos anos um crescimento sem igual do número de crimes praticados pela Internet. Em igual número, crescem as investigações e processos criminais, e consequentemente decisões do Poder Judiciário que determinam o acesso, fornecimento ou apagamento de dados eletrônicos mantidos em redes sociais, portais de conteúdo, serviços de armazenamento na nuvem, entre tantos outros. Ocorre, no entanto, que muitos desses serviços são prestados por empresas estrangeiras, que por vezes possuem no Brasil apenas uma empresa subsidiária ou outra empresa do mesmo grupo econômico, mas que em nada se relacionam com o serviço prestado.

Não é raro, entretanto, que certas atividades específicas e auxiliares ou complementares do serviço principal sejam delegadas a subsidiárias. É o caso, tomando como exemplo o modelo de serviço gratuito suportado por anúncios, da venda de espaços publicitários. Enquanto a empresa central oferece e controla determinado serviço online, suas subsidiárias, localizadas em mercados relevantes, oferecem a possíveis anunciantes a oportunidade de veicular peças publicitárias em espaços pré-definidos na plataforma oferecida e mantida pela empresa central.

Fala-se aqui de empresas distintas: a empresa-mãe, sediada no exterior, responsável pelo serviço digital, tem personalidade jurídica própria, sendo responsável por seus atos; a empresa subsidiária, sediada no Brasil, responsável pela prestação de serviços acessórios e não do serviço principal ___ detentora de personalidade jurídica própria, à luz de outra ordem jurídica nacional e sob outra bandeira. Não há como confundir uma com outra, nem como exigir desta a conduta exigível daquela.

Normal, a enfatizar tal separação, é que a subsidiária sequer tenha acesso aos dados dos usuários e os servidores que operam o serviço. Isto se explica tanto pela centralização do processamento de dados quanto pelo empenho na proteção do consumidor. É regra notória no exterior, onde há mais tempo vigem leis sobre proteção de dados pessoais e privacidade, que a confidencialidade e a segurança dos dados pessoais ___ incluídos aqueles em trânsito na Internet ___ devem ser garantidas na prestação de serviços digitais: proteção que envolve desde o cuidado na coleta dos dados, informando o usuário sobre quais deles são coletados e para que fins serão utilizados, até o processamento desses dados com a certeza de sua segurança física e lógica, por meio do controle de acesso, criptografia, regras internas de confidencialidade, entre tantos outros.

São essas empresas então aquelas perseguidas pelo Judiciário, sujeitadas a pesadas multas ou ameaças de suspensão de atividades, que no entanto nada podem fazer para entregar os dados requeridos. O Judiciário, agindo assim e exigindo que as empresas brasileiras obtenham por qualquer via os dados requeridos ainda que isso implique em violação da lei estrangeira e da soberania e jurisdição de outra nação, age de modo ilegal. A via correta, nesses casos, é a da cooperação internacional, que fornece meios suficientes para que o Judiciário dos dois países trabalhem em conjunto e dentro da legalidade.

Fora dos mecanismos da cooperação judiciária não há, decididamente, como coagir a empresa estrangeira atuante em seu próprio território patrial. No equívoco procedimento hoje adotado de modo aleatório por membros do Judiciário brasileiro, a imposição de multas por descumprimento de decisão judicial face à impossibilidade jurídica derivada da localização do controlador dos dados é uma desconsideração da soberania do Estado estrangeiro. (…)

O quadro geral das situações e casos descritos pela federação associativa consulente faz ver uma inquietante tendência. No momento histórico em que os Poderes políticos da República enfrentam grave crise de credibilidade, o Poder Judiciário vê crescer a esperança da sociedade na sua retidão e integridade, sem dúvida, mas também no seu discernimento e no seu perfeito domínio do direito enquanto ciência. Para que preserve o crédito que a sociedade lhe confia, a Justiça não pode ceder ante argumentos de ocasião ___ utilitários, “nacionalistas”, olímpicos ___ em detrimento do rigor científico e da ética que se impõem a todos os operadores do Direito, destacadamente àqueles a quem o sistema outorgou o poder de decidir.  Não se carece, nesse contexto, de remédio integrativo ou de inovação normativa.  Basta que se honre a disciplina legal em vigor ___ o direito positivo existente, que não padece, no particular, de ambiguidade ou de insuficiência.


O parecer do Prof. Francisco Rezek consta nos autos públicos da ADC nº 51, acessíveis pelo website do Supremo Tribunal Federal, mas você pode lê-lo aqui, na íntegra: Parecer Francisco Rezek (29/09/2017).