Uber: os argumentos pela legalidade (Parte 2)

No artigo de hoje voltamos a falar sobre Uber. No primeiro artigo da série, explicamos como funciona o serviço, como ele se compara com o serviço do taxi comum e as críticas que pesam contra a empresa a respeito da legalidade do seu negócio. Agora, veremos os benefícios trazidos por esse modelo de negócios inovador e os argumentos pela sua legalidade.

Apesar das críticas recebidas, é fato que o serviço alterou substancialmente o panorama do transporte individual nas cidades onde atua: não só houve um grande movimento do mercado para acomodar a nova concorrência, com surtos de demanda e o crescimento da base de usuários, mas a saga do aplicativo trouxe à tona questões antes de pouco interesse nesse mercado, como a mudança dos possíveis paradigmas da mobilidade urbana.

O primeiro argumento a favor da legalidade dos serviços prestados pela empresa Uber e seus motoristas advém da própria Constituição Federal, que em seu artigo 170 garante a liberdade de iniciativa, a liberdade de concorrência e a liberdade de trabalho.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio ambiente;
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Como se nota pela leitura do artigo, esses são princípios, direitos fundamentais que orientam todo o ordenamento jurídico brasileiro. Princípios, em geral, são normas jurídicas que prescrevem que algo deve ser cumprido na maior medida possível, sendo limitado apenas quando entram em confronto com outro princípio. Como exemplo disso, podemos pensar nos casos de biografias não autorizadas, em que a vida privada de um indivíduo entra em conflito com o direito à informação do público que quer saber sobre sua vida, escrita na tal biografia. Mesmo nesses casos, só se admite a limitação de um princípio se essa for uma medida proporcional, minimizando prejuízos aos dois lados interessados.

Em recente parecer, o jurista José Joaquim Gomes Canotilho fala justamente sobre a inconstitucionalidade material de leis municipais recentemente aprovadas para proibir a atuação da Uber por violação a tais princípios. Eventuais restrições a tais princípios deveriam ser acompanhadas de justificativa suficiente e medidas de mitigação ao efeito perverso do monopólio legal sobre determinada atividade econômica. No caso em tela, não parece haver razão suficiente para a manutenção do monopólio no setor de transportes individuais, sobretudo quando tal serviço é prestado de forma privada.

Canotilho sustenta também a inconstitucionalidade dessas leis por ofensa à competência exclusiva da União: segundo o artigo 22 da Constituição, só a União (e nunca os Municípios) pode legislar sobre direito civil e comercial, transportes, trânsito e transporte, e condições para o exercício de certas profissões. Há uma autorização para delegar parcialmente tal competência aos Estados, mas essa autorização não compreenderia a possibilidade de proibir setores inteiros de atuar no mercado brasileiro, o que permanece como competência da União.

Devemos, antes de prosseguir, estabelecer algumas diferenças importantes para esse debate sobre a natureza dos serviços de transporte. Segundo a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587 de 2012), os serviços de transporte de passageiros podem ser caracterizados em coletivo ou individual, e como público ou privado (art. 3º). Pelo primeiro fator, o transporte coletivo é caracterizado pelo atendimento simultâneo de mais de um passageiro e tem como exemplo os ônibus municipais, que operam através de concessões, ou os ônibus de empresas de transporte rodoviário. O transporte individual é, assim, definido pela individualização das viagens realizadas, atendendo-se, normalmente, a apenas um passageiro por vez; é o caso dos taxis e dos motoristas particulares, por exemplo.

O segundo fator de diferenciação é de suma importância para o debate em tela: a natureza pública ou privada da atividade diferencia o serviço prestado e oferecido ao público em geral a todo o tempo (natureza pública) do serviço prestado mediante contratação específica e individualizada, com características operacionais exclusivas. No caso do transporte coletivo público, podemos pensar então nos ônibus municipais, no chamado transporte público; já o transporte coletivo privado são os ônibus fretados e de transporte rodoviário, cujo serviço é prestado pela compra prévia de passagens.

No caso do transporte individual a diferença entre o serviço público e o serviço privado pode parecer inexistente, mas ela subsiste: enquanto o serviço público de transporte individual é oferecido ao público de modo incondicionado e ininterrupto, como no caso dos taxis, o serviço privado de transporte individual não é ofertado ao público em geral, mas depende de contratação prévia. No conceito de transporte privado individual podemos contar então não só os motoristas da Uber, mas também os motoristas particulares ou aqueles que prestam serviços a empresas de transporte executivo. Em todos esses casos, o motorista não oferece o serviço a qualquer um que lhe faça sinal na rua, mas apenas quando regularmente contratado previamente.

Antes de prosseguir, vale uma nota: os métodos de contratação não são exclusivos de uma determinada atividade. Algo já se falou sobre a coincidência de modelos de negócio para prestadores de serviços de transporte privado e público: supostamente, o uso de “aplicativos de taxi” como o 99Taxis e o EasyTaxi para fazer a chamada de taxis até um endereço específico seria modalidade exclusiva de contratação de serviços de taxi. O fato de a Uber utilizar método semelhante, no entanto, não afeta a conclusão de que os serviços são diferentes, pois o fator chave é a natureza da oferta de serviços: o aspecto central da atividade do taxista é a oferta pública, ainda que se beneficie também de serviços de intermediação como EasyTaxi e 99Taxis. O motorista particular, da Uber ou não, continua oferecendo seus serviços apenas a um público restrito que é usuário cadastrado do serviço, continua impedido de “pegar” qualquer passageiro que lhe faça sinal pelas ruas. A convergência tecnológica, nesse caso, demonstra apenas a efetividade de determinado modelo de negócios, não alterando a natureza jurídica da questão. Em verdade, parece mais razoável dizer que os taxistas, com tais aplicativos, é que passam a concorrer também com serviços privados que já existiam há muito tempo, apesar de não tão difundidos…

Mas, afinal, o que uma empresa como a Uber traz de benefício à sociedade? O interesse em modelos flexíveis de transporte individual, prestados por empresas privadas em modelos como o da Uber ou de outras como BlablaCar e a (ainda não atuante no Brasil) Lyft, encontra-se justamente no benefício geral trazido pela concorrência. Um ator econômico, enquanto detém o monopólio de um determinado mercado, tem grande margem de manobra em relação a como o serviço é prestado, em que condições, qualidade, etc. Geralmente, haveria também um poder de manipular preços, o que no entanto não se vislumbra no caso dos taxis porque estes são fixados por atos normativos e são padronizados. Abrir determinado mercado à concorrência, no entanto, faz com que os atores econômicos, os prestadores de serviço, tenham que disputar a clientela, havendo um incentivo para que o serviço seja melhorado e atenda melhor às necessidades do mercado. Ao mesmo tempo, a abertura concorrencial de um mercado beneficia também a população, que passa a ter a sua disposição diversas opções de serviço, podendo escolher aquela que mais se adequa a suas necessidades, sejam elas relacionadas ao preço, à qualidade ou à confiabilidade do serviço.

Há ainda muito a se discutir sobre o modo correto de restabelecer a concorrência em serviços de transporte individual para equilibrar o poder dos atores envolvidos, como a possibilidade de flexibilização de certas regras regulatórias referentes aos taxistas, de modo que esses possam também competir com serviços privados de transporte. Esse assunto, no entanto, será abordado no próximo artigo desta série.

Atualmente os serviços de transporte privado individual seguem sem regulamentação clara, salvo o entendimento de alguns que coloca os motoristas da Uber como “taxis piratas”. Afirme-se, desde já, no entanto, que a ausência de regulamentação, por si só, não é causa de ilegalidade. Desde a aprovação, pelas câmaras municipais de diversas cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, de leis que proíbem a Uber de prestar serviços já foram intentadas diversas ações em diferentes comarcas para suspender a aplicação da lei. Independentemente de leis proibindo o serviço, em algumas cidades, dependendo do entendimento da prefeitura, carros da Uber vez e outra são guinchados e os motoristas autuados.  Em outras, como São Paulo, a continuidade do serviço é garantida por decisão judicial.

Há debates nesses grandes polos sobre a possibilidade de regulamentação do serviço como uma categoria à parte dos taxis. Em São Paulo, por exemplo, a lei municipal (Lei nº 16.279 de 2015) que proíbe o funcionamento da Uber contém a provisão de que a Prefeitura pode optar por regulamentar o serviço após estudo de mobilidade urbana favorável. Em suma, o serviço ainda é prestado de forma mais ou menos homogênea nas cidades atendidas pela Uber, ainda que em algumas delas, pela proibição ainda vigente, haja fiscalização e oposição constante da administração municipal e dos próprios taxistas. No próximo artigo desta série abordaremos em maiores detalhes o futuro da Uber e as propostas para sua regulamentação no Brasil.

 

Veja aqui o parecer dado pelo Prof. J.J. Gomes Canotilho.

Veja aqui o primeiro artigo da série: “Uber: a chegada conturbada ao Brasil (Parte 1)”

Veja aqui o terceiro artigo da série: “Uber e a regulação dos novos modelos de negócios (Parte 3)”

 

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