Sigilo bancário e a e-Financeira: uma discussão de longa data

Francisco Rezek Sociedade de Advogados

Em sessão do dia 24 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional o repasse de informações bancárias por instituições financeiras à Receita Federal sem a necessidade de ordem judicial, entendendo não haver violação do sigilo bancário dos contribuintes. Na conclusão do julgamento das 4 (quatro) Ações Diretas de Inconstitucionalidade e de Recurso Extraordinário sobre o mesmo tema, a decisão, tomada por maioria de 9 votos favoráveis a 2 contrários, adotou o entendimento de que a norma questionada (a Lei Complementar nº 105 de 2001) não importa em quebra de sigilo, mas em simples transferência do sigilo da órbita bancária para a fiscal, ficando preservado o sigilo bancário em relação a terceiros.

A discussão toda teve início com a aprovação da Lei Complementar nº 105 de 2001, que previa em seu artigo 5º que as instituições financeiras seriam obrigadas a fornecer ao Fisco informações sobre as transações financeiras de seus clientes, desde movimentações em conta corrente, conta poupança e similares, até operações de crédito e investimentos. Essa lei foi regulamentada, mais tarde, entre outras, pela Instrução Normativa nº 811 de 2008 da Receita Federal do Brasil, que criou a DIMOF, a Declaração de Informações sobre Movimentação Financeira. Essa declaração era feita semestralmente por todos os bancos e outras empresas do setor financeiro e continha todas as movimentações financeiras de um determinado cliente, quando o total delas somado superasse, no período de referência, R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para pessoas físicas ou R$ 10.000,00 (dez mil reais) para pessoas jurídicas. Recentemente, a DIMOF foi substituída por um novo modelo de declaração, instituído pela Instrução Normativa RFB nº 1571 de 2015, a chamada “e-Financeira”. A nova declaração compreende uma quantidade maior de dados a serem informados à Receita Federal, tal como saldos, rendimentos, compra de moeda estrangeira, além de todas as movimentações ocorridas nas contas bancárias de determinado cliente. A e-Financeira, ao contrário da DIMOF, é enviada pelos bancos ao Fisco mensalmente, quando o total de movimentações financeiras superar, em um mês, R$ 2.000,00 (dois mil reais) para pessoas físicas ou R$ 6.000,00 (seis mil reais) no caso de pessoas jurídicas.

Mas qual razão levou ao questionamento de tais práticas? Os argumentos pela inconstitucionalidade da Lei Complementar mencionada (assim como seus subprodutos, a DIMOF e a e-Financeira) giram entorno da proteção constitucional da intimidade e da vida privada, contida no artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal. Segundo os defensores da tese, a garantia do sigilo bancário, inserida na proteção geral à intimidade, só poderia ser afastada por outra norma de igual peso contida na Constituição Federal. A obrigação de que as instituições financeiras entreguem relatórios detalhados sobre as movimentações financeiras de seus clientes, sem a necessidade de ordem judicial reconhecendo a necessidade de afastar o sigilo bancário, representaria, assim, violação em larga escala e sem justificativa jurídica pormenorizada da privacidade do cidadão.

O entendimento do Supremo vai pela via contrária. Segundo aquela Corte, a atribuição fiscalizatória da Receita Federal, justificada pelo interesse público no cumprimento da lei fiscal, é suficiente para tomar como aceitáveis as práticas introduzidas pela Lei Complementar nº 105/2001. Segundo o Tribunal, os instrumentos previstos nessa lei conferem efetividade ao dever geral de pagar impostos, não havendo, por si, uma violação de sigilo. Fica preservado, no entanto, o dever da Receita Federal de guardar sigilo quanto aos dados recebidos pela e-Financeira, resguardando-os do interesse de terceiros, uma vez que os dados foram recebidos para a execução de uma atribuição de interesse público, e só isto.

Já nos idos de 1995, o então Ministro Francisco Rezek sustentou em voto sobre caso similar, a ideia de que o sigilo bancário tem estatura infraconstitucional, não sendo adequado incluí-lo, apenas por ânimos garantistas, no rol de direitos fundamentais, quando está também em jogo a fiscalização tributária. Não haveria, assim, uma exceção de sigilo no caso da requisição de informações financeiras pelos órgãos fiscalizatórios, uma vez que esta é justamente uma das exceções àquela garantia infraconstitucional. No mais, os dados financeiros em si não são protegidos por sigilo absoluto, mas apenas na medida em que deem conta de aspectos mais privados da vida de uma pessoa, como suas relações particulares, aspectos da sua saúde, entre outros.

Obviamente, no entanto, o acesso a dados sensíveis como os registrados por entidades do sistema financeiro não deve ser tomado com leviandade: apesar de ser possível à Receita Federal conhecer tais informações sem a necessidade de ordem judicial permitindo o compartilhamento delas pela instituição financeira, o compartilhamento dessas informações em si deve ser justificado e contar com todas as garantias para resguardar o sigilo das informações frente a terceiros (incluindo o acesso indiscriminado no seio da Receita Federal) e para garantir o direito de defesa e o contraditório ao contribuinte. Por essa razão, o principal requisito para a viabilidade da e-Financeira é a existência de um procedimento administrativo de fiscalização e a notificação do contribuinte de tais atos.

O relator das Ações Diretas de Inconstitucionalidade sobre a matéria, o Min. Dias Toffoli, resumiu bem o resultado do julgamento:

“Os estados e municípios somente poderão obter as informações previstas no artigo 6º da LC 105/2001, uma vez regulamentada a matéria, de forma análoga ao Decreto Federal 3.724/2001, tal regulamentação deve conter as seguintes garantias: pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado; a prévia notificação do contribuinte quanto a instauração do processo e a todos os demais atos; sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico; existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso; estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de desvios.”

É certo que o recente julgamento do Supremo Tribunal Federal deve ter grande repercussão nas práticas fiscalizatórias da Receita Federal, o que deve ser acompanhado pela natural adequação de procedimentos para o respeito de direitos dos contribuintes e para a coibição de excessos, mas podemos estar diante de um marco histórico no que toca a crescente integração entre bancos de dados públicos e a fiscalização tributária.

 

 

A íntegra do voto mencionado pode ser encontrada neste link: Sigilo bancário – 1995.

 

Francisco José de Castro Rezek é um dos sócios-fundadores da Francisco Rezek Sociedade de Advogados.
É advogado formado pela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie e especializado em Direito Tributário.

 

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