Franquias de dados na Internet fixa: uma questão de lucro?

Um dos assuntos que vem dando o que falar na Internet e fora dela é a proposta dos limites de dados na Internet fixa, ou franquias de dados. As empresas de telecomunicações que ofertam esses serviços vêm pressionando a algum tempo por mudanças no modo de cobrança do uso da Internet fixa e em fevereiro desse ano vimos o primeiro grande passo de uma dessas operadoras para mudar o cenário de vez, quando a VIVO afirmou publicamente que passaria a limitar o consumo de dados de seus usuários. A questão, no entanto, tem sido mal discutida por, em parte, falta de conhecimento, e em parte, falta de transparência ou boa vontade. Qual é o ponto central do problema?

O que são franquias de dados e de onde vem o problema?

Em 28 de maio de 2013 a ANATEL aprovou a Resolução nº 614, que instituiu o Regulamento do Serviço de Comunicação Multimídia (RSCM), definição que abrange, entre outras, a Internet, entendida como rede pública de comunicação de dados, imagens, vídeos, sons, e texto (RSCM, art. 3º). A partir de então, boa parte das operadoras de telecomunicações passou a incluir em seus contratos cláusulas que lhes permitiam a suspensão ou redução de velocidade da conexão do cliente que ultrapassasse determinada franquia de dados transmitidos.

Conforme o cliente navegasse na Internet, fazendo download e upload de dados (para acessar uma página da web, por exemplo) a quantidade de dados trocados seria contada, criando assim um “limite de consumo” para o usuário. Após ultrapassar este limite, a conexão poderia ser suspensa até o fim do ciclo de cobrança (e a renovação da franquia) ou a conexão poderia ter sua velocidade reduzida. Algumas operadoras permitiam ainda a contratação adicional de “pacotes extras de dados”, permitindo ao usuário aumentar sua franquia em determinado mês e continuar navegando, mediante pagamento adicional. Essa limitação, no entanto, raramente era aplicada pelas operadoras, que ofereciam navegação ilimitada “a título promocional”.

João Batista de Rezende, presidente da Anatel, defendeu o modelo de franquias na Internet fixa.

Em fevereiro de 2016, no entanto, a operadora VIVO anunciou que passaria a adotar tal cláusula e exercer a limitação de acesso no caso dos “heavy users”, usuários que consumiriam quantias elevadas de dados de navegação. Tal anúncio causou comoção na mídia e na sociedade civil, levando ao aprofundamento das discussões sobre o assunto colocado sob os holofotes da atenção pública. Seguindo os passos da VIVO, em momento posterior, outras operadoras anunciaram também que passariam a aplicar tais limitações.

O que dizem as empresas de telecomunicações

Os grandes interessados no sistema de franquias de dados são as empresas de telecomunicações, como VIVO, Net, Oi. Segundo elas, os recentes serviços de streaming, jogos online e o crescimento de conteúdo multimídia em geral ameaça a manutenção da rede física por onde a Internet “passa”. Além disso, o consumo ilimitado de dados ameaçaria também a viabilidade econômica da prestação do serviço de conexão de Internet, ao elevar os custos de operação (instalação de cabos, manutenção da rede, etc) e manter estáticas as receitas. A limitação do acesso à internet fixa por meio de franquias, nessa ótica, é necessária para gerenciar a congestão da rede, buscando evitar que o backbone da Internet seja sobrecarregado pelo consumo de determinado grupo de usuários que se utilizam de muitos dados em sua navegação (incluindo o uso de serviços de streaming de vídeo e áudio e downloads).

Pelo lado comercial, a utilização de franquias de dados permite uma melhor segmentação do mercado consumidor, melhor distribuindo o ônus econômico de financiamento do serviço. Atualmente, alega-se, enquanto todos pagam o mesmo valor independentemente do seu consumo de dados, proporcionalmente, os usuários que consomem poucos dados pagam pelos que consomem uma grande quantidade. Assim, as franquias permitiriam maior isonomia entre os consumidores, cobrando-se mais de quem é responsável pela maior demanda e menos de quem usa pouco.

Não queremos que alguém queira a qualquer momento não estar conectado à nossa rede, mas como qualquer outra coisa na vida, se você dirige 100 mil milhas ou mil milhas, você compra mais gasolina. Se você liga o ar condicionado a 18° ao invés de 22º, você consome mais eletricidade. O mesmo vale para o uso da internet, como o mesmo vale para dispositivos móveis. Quanto mais bits você usa, mais você paga. Então por que não também com a Internet fixa?” Brian Roberts, CEO da COMCAST (EUA), em entrevista ao Business Insider, publicada em 23/12/2015.

 

Por que essa explicação “não cola”

Para começar, diversos especialistas já reconheceram, inclusive um engenheiro da operadora Comcast, uma das maiores operadoras dos Estados Unidos, que a utilização de franquias como ferramenta de gerenciamento de rede é uma medida ineficaz.

Limitar a quantidade de dados utilizados acarreta, de modo simples, a concentração do uso desses dados no início do ciclo de cobrança, o que por sua vez, poderia inclusive agravar o problema alegado, por concentrar o tráfego em determinados período. Pense, por exemplo, em como você gasta seu salário: geralmente no começo do mês, quando você acabou de receber, a predisposição para esbanjar é maior que no final do mês, quando o dinheiro vai acabando.

Do mesmo modo, simplesmente limitar quantitativamente a conexão, não impede a ocorrência de picos de consumo por fatores muitas vezes externos à dinâmica comercial. Pensemos no lançamento de um novo filme ou série em serviços de streaming, ou de algum vídeo ou notícia de grande relevância: o usuário vai acessar o conteúdo, mesmo que isso signifique um baque grande no seu consumo de dados.

Segundo especialistas, os custos estruturais para os fornecedores de conexão à Internet, conhecidos como ISPs, são praticamente fixos.

Como bem detalha artigo da CCG Consulting, os custos de uma operadora de telecomunicações que fornece conexão à internet são compostos por custos de estrutura (raw bandwidth) e custos de tráfego (transit).

O primeiro, custo de estrutura, diz respeito à capacidade instalada de transmissão de dados na rede da operadora. Já os custos de trânsito referem-se aos valores pagos aos controladores de outras redes às quais a rede da operadora se conecta para que essas redes conectadas levem tráfego para redes de terceiros com as quais aquelas estão conectadas. O preço pago por Mbps (capacidade de transferência simultânea, banda) diminui de acordo com a quantidade total contratada, de modo que grandes operadoras geralmente pagam um valor relativamente baixo para cobrir os custos de trânsito de todos os seus usuários. Uma vez que no Brasil podemos dizer que nosso mercado de telecomunicações é dominado por um oligopólio que detém também grande parte da infraestrutura de comunicação, tais custos são ainda menores.

Note-se aqui que em nenhum momento se fala de quantidade de dados transferidos, mas apenas de velocidade. Os custos de tráfego são compostos pela contratação de capacidade de transmissão simultânea, banda ou velocidade. Pensemos em um cabo de transmissão como um tubo de grande diâmetro, por onde passam diversos tubos menores, que correspondem à conexão de vários clientes. O diâmetro do tubo dita a vazão dos dados, a velocidade, o que é chamado de banda. Assim, um “tubo” que tenha uma banda total de 1000Mbps, pode acomodar no máximo conexões que somem no total esse valor: 100 conexões de 10Mbps, 40 conexões de 25Mbps ou 10 conexões de 100Mbps. Banda significa a quantidade de dados que podem ser transmitidos em determinado espaço de tempo.

Nesse cenário, dizer que os custos diminuirão porque parte dos usuários deixará de utilizar grandes quantidades de dados, enquanto outros permanecem com o uso intenso mediante pagamento extra, não faz sentido. A contratação de banda não é variável, mas determinada pelo maior uso da rede: se em uma rede com 100 usuários, 10 se utilizarem da banda máxima alocada a eles e os outros 90 não, a contratação de banda ainda será pautada pelo uso daqueles 10 consumidores que optaram por pagar a mais por planos maiores ou ilimitados.

Tais contratos não são pautados pelo total de dados transferidos, mas pela capacidade de transferência contratada, o que elimina qualquer comparação com o consumo de gasolina ou energia: não importa quantos dados passem por determinado “tubo”, mas apenas o diâmetro do “tubo”. Por isso, faz sentido que paguemos mais ou menos dependendo da velocidade da nossa conexão, o que já acontece.

Na verdade, há outras soluções mais efetivas para a redução de tais custos, como no caso do “peering”, que consiste na conexão direta entre duas redes que costumam trocar muitos dados a fim de reduzir o custo de trânsito (custos associados ao tráfego de dados por meio de redes intermediárias). Podemos citar também as Content Delivery Networks, que basicamente encurtam distâncias de transmissão de dados ao fornecer repositórios de conteúdo (servidores locais) diretamente conectados à rede da operadora (ao invés de recorrer aos servidores centrais da empresa, mais distantes do usuário).

O que o Direito tem a ver com tudo isso?

A Internet no Brasil, apesar de não ser um ambiente extremamente regulado, já possui suas normas básicas a reger o comportamento do usuário e das empresas envolvidas com o setor. Ainda que os aspectos econômicos e técnicos tenham grande peso no ambiente regulatório, na existência de regra restritiva da liberdade contratual, prevalece a lei, e não a vontade dos agentes. É exatamente este o caso das franquias de dados.

O Marco Civil da Internet

O Marco Civil da Internet, apelido da Lei nº 12.965 de 2014, parece ser bastante conhecido pela sociedade: os debates acerca de sua aprovação, as controvérsias sobre suas regras e o clímax trazido pelas revelações de Edward Snowden que resultou na aprovação dessa lei foram objeto de grande interesse da grande mídia. O Marco Civil faz as vezes de “Constituição” e “Carta de Direitos” da Internet (não que substitua a Constituição Federal, mas pelo seu valor estruturante). Essa lei traz os princípios básicos a serem respeitados por todos na Internet e os direitos e deveres de usuários e provedores (empresas que fornecem conexão ou conteúdo na Internet). Um dos direitos ali presentes é o direito de não suspensão.

MCI, art. 7º. O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:

(…)

IV – não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização; (…)

Como foi explicado, esse direito é relevante na medida em que no modelo de franquias, após o fim da franquia, a conexão seria interrompida até o fim do ciclo de cobrança, quando o usuário teria sua franquia restaurada para o próximo mês. Conforme prescreve o artigo 7º, inciso IV do Marco Civil da Internet, é vedada a interrupção no provimento de conexão à Internet salvo por motivo de inadimplemento. Não existindo débito não pago, mas sim mera limitação contratual ao acesso à Internet, a suspensão da conexão por exaustão da franquia contratada é ilegal.

Neutralidade

Ao mesmo tempo, a suspensão da conexão à Internet ocorreria através do bloqueio de quaisquer pacotes de dados que tivessem como origem ou destino um determinado consumidor que excedeu sua franquia de dados. O que ocorre, em verdade, é a discriminação desses pacotes em razão de sua origem/destino, prática que também é vedada pelo Marco Civil da Internet, na medida em que viola a neutralidade da rede, conforme seu artigo 9º:

MCI, art. 9º. O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:
I – requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II – priorização de serviços de emergência. (…)

Como vimos, não há razão técnica que justifique a suspensão ou a degradação da conexão, razão pela qual suspender a conexão do usuário que utilizou toda a sua franquia de dados seria uma violação da neutralidade de rede.

Acesso a informação e cultura

Um dos argumentos mais relevantes contra as franquias, no entanto, vem do efeito desse modelo na relação entre o usuário consumidor e as fontes de conhecimento e cultura presentes na Internet. Como prescreve também o Marco Civil da Internet, a disciplina da Internet no Brasil tem como objetivo a promoção do amplo acesso à Internet, à informação, ao conhecimento e à cultura.

MCI, art. 4º. A disciplina do uso da internet no Brasil tem por objetivo a promoção:

I – do direito de acesso à internet a todos;

II – do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos; (…)

A limitação da quantidade de dados transferidos indiretamente limita o conteúdo acessível pelo usuário que opta por planos com menores franquias. Não há a limitação pelo serviço acessado, mas sim pela oportunidade real de utilização do serviço: um usuário com uma pequena franquia pode acessar o website da plataforma de palestras TED, mas se ele só puder assistir 3 ou 4 palestras por mês sem comprometer o restante de suas atividades mais básicas na rede, pode-se considerar que esse usuário tem acesso efetivo a esse conteúdo? Igualmente, um usuário que assina o serviço da Netflix tem, na teoria, acesso a um imenso repertório de filmes, mas se só pode assistir 3 ou 4 por mês, qual o grau de acesso ele realmente possui? Quanto a tecnologias mais novas como realidade virtual, cloud computing e mesmo jogos online, nem precisamos dizer que, com o consumo cada vez mais alto de dados para possibilitar o uso dessas tecnologias, o modelo de franquias teria efeitos devastadores.

O Marco Civil da Internet proíbe o corte de sinal de Internet, a não ser por inadimplência.

Estaríamos diante, em verdade, de uma segmentação social no acesso a diversos tipos de serviços na Internet, transformando a conexão à rede em um “item de luxo”, onde apenas os clientes com os planos mais avançados e caros poderiam desfrutar integralmente de certos conteúdos, inacessíveis na prática para os clientes com planos básicos. Efetividade aqui é a palavra chave, e sem ela, a medida torna-se desproporcional por ferir indiretamente a neutralidade de rede e o acesso à informação e à cultura sem trazer outro benefício palpável que não o benefício econômico para o provedor de conexão.

Concorrência

Nos últimos anos os serviços de streaming on-demand tais como YouTube, Netflix, Spotify, Deezer, além de serviços de comunicação como e-mail, mensagens instantâneas, voz sobre IP, cresceram exponencialmente. Tais serviços, em boa parte, concorrem diretamente com serviços tradicionais de telecomunicações, radiofusão e difusão de sinal de televisão, serviços normalmente prestados pelas mesmas operadoras que fornecem conexão à internet, e geralmente mesmo associados a esta na forma de pacotes de serviços. O que se nota na experiência estrangeira onde tais serviços de streaming prosperam, como nos Estados Unidos, é que a preferência por tais serviços, prestados através de rede tradicionalmente aberta e ilimitada, tem levado muitos consumidores a abrir mão de serviços tradicionais de TV a cabo e telefone. Ocorre que pela diferença de modelo de negócio, são esses serviços tradicionais que proporcionam à operadora maior margem de lucro.

A tendência à implementação de franquias de consumo existe, entre outras razões, para compensar a perda de receitas advindas da concorrência entre serviços tradicionais e serviços prestados via internet, além de forçar o consumidor a manter os serviços tradicionais contratados na hipótese de ter sua conexão limitada com o consumo prematuro da franquia. Assim, quando a franquia acaba, o usuário é forçado a pagar mais por mais dados ou recorrer ao serviço tradicional de TV a cabo.

Ainda, a prática de limitar o acesso a determinados serviços como Netflix e Youtube enquanto promove, ao mesmo tempo, serviços concorrentes que não contam com tais limitações (por serem fornecidos pela rede convencional de TV a cabo ou mesmo por “benevolência” da empresa quando fornecido via Internet) pode configurar conduta anti-competitiva, punível nos termos do Direito Concorrencial e da Lei nº 12.529/2011. Isso porque os provedores dos serviços como Netflix e Youtube tem seu acesso à clientela prejudicado por um aumento arbitrário nos preços para seus consumidores: para realmente poder aproveitar uma assinatura do serviço, o usuário tem que arcar com um plano mais caro por conta das franquias. Enquanto isso, os serviços concorrentes oferecidos pelas operadoras não sofrem com a limitação de dados. Mesmo com a simples implementação do sistema de franquias de dados sem uma justificativa econômica razoável (isto é, sem que as empresas comprovem que o aumento é para cobrir um aumento de custos de operação), poderíamos estar diante de um simples aumento arbitrário de lucros, o que também é punível.

O que tiramos disso tudo?

Com as objeções jurídicas ao modelo de franquias de dados, fica bastante claro que qualquer tentativa nesse sentido é absolutamente ilegal. Por outro, vemos que o peso econômico dessa decisão é determinante para a motivação das operadoras, que buscam rentabilizar seu negócio quando confrontadas com empresas que operam na Internet e ganham muito dinheiro com isso (não sabemos se podemos dizer que ganham mais que as operadoras em si), agitadas por certa ganância. Por uma terceira face, vemos ainda uma conduta no mínimo questionável em termos competitivos.

Mas no aspecto talvez mais relevante, temos que o modelo proposto de franquias é uma grave ameaça aos direitos conquistados pelo consumidor, sobretudo no que diz respeito ao acesso à cultura e à informação. Não queremos uma Internet em que apenas os ricos tem total acesso a todo o potencial da rede. Queremos a remuneração justa daqueles que nos oferecem o serviço, e não o abuso corriqueiro contra o consumidor que é tão típico na oposição entre a grande empresa e seus consumidores dependentes. Nesse aspecto, limitar a Internet é limitar a inovação de novas tecnologias do setor, é limitar a expansão da rede e da distribuição de conhecimento que ela proporciona. Não nos curvaremos.

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